O passado ...

Sentiu-se diferente ao acordar. O pijama … bom o pijama estava grande demais. Um vestido. Sentou na beira da cama. Os pés não tocaram ao chão. Os pés ... pareceram tão ... pequenininhos. Olhou as mãos num assombro. Eram pequenas também. Aproximou-as do rosto para ver melhor, as unhas eram delicadas. Unhas de uma criança. Pegou nos cabelos. Cachinhos. Não se lembrava de ter cabelos cacheados como aqueles ... a não ser quando ...

Pulou da cama. O salto pareceu longo. Viu as bonecas num canto do quarto. Meu Deus! Até a sua boneca bebê aquela que o irmão jogou debaixo de um ônibus estava ali. Correu até o brinquedo. Beijou como se fosse novo. Como se fosse a primeira vez que a tivesse visto. Só agora notara a luz do abajur com detalhes de borboleta refletida na parede. Adorava aquilo. Sentia-se uma borboleta também vendo tantas refletidas em todas as dimensões do seu quarto. Viu o sapato azul claro, num canto. Aquele que nos dias de chuva ficava cinza da lama lisa do quintal.

Sorriu.

Girou a maçaneta. Não se recordava de que ela fosse tão alta e tão dura de abrir. Saiu para o corredor. Próximo a escada, o vaso inglês que ela quebrara no feriado de 15 de novembro. Na ocasião ficou uma tarde toda em cima da goiabeira do pátio, com medo da reação da mãe. No fim Juninho levou a pior, afinal a doce menininha não seria capaz de quebrar o vaso predileto da mamãe. Se ela soubesse que foi durante um rodopio. Num ímpeto de bailarina que a garotinha acertou o vaso...

Já no meio da escada. Parou. Pensou. Respirou fundo e ...

- Paiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. – Gritou bem alto.

O homem apareceu num instante no corredor. No quarto lia um livro acomodado na velha poltrona de couro. Gostava de ler ao acordar. Como é que chamava mesmo ? ah! Exercício de concentração diária. Era um leitor assíduo e um escritor também. Pousou a obra sobre o criado-mudo e apressou os passos para fora do quarto. Ela teria caído da escada? Mas o grito não pareceu de dor? Encontrou-a parada cinco degraus abaixo (a escada tinha 15). A cara mais ingênua do mundo.

- Oi pai. – Disse a garotinha.

Ele sorriu. Ela não tinha jeito. Adorava chamar atenção.

- Oi Isa. Porque você gritou?

Um risinho sapeca.

- Nada não. – Respondeu a menininha.

Ele balançou a cabeça, num de discordância, mas não de raiva.

- Você me assustou. Pensei que tivesse caído da escada. Fico feliz que você esteja bem filha. Vem cá com o papai.

Ela veio saltitando. Adorava pular nos degraus, o que ele achava muito perigoso. Ela aproximou-se. Ele a abraçou.

- Isa! Não pule na escada! Você pode cair! – Advertiu gentilmente.

Ela adorava o jeito do pai. Sempre tão cuidadoso. Tão carinhoso. Tão tranqüilo. Tão gigante. Era o seu super-herói.

- Papai.

- Diga bebê?

- Você esqueceu que sou quase uma aranha?

O homem soltou uma daquelas risadas gostosas. Esquecera que a filha também tinha uma imaginação fértil.

- Não era uma borboleta? – Questionou.

- Eu sou uma aranha, uma borboleta, depende de onde eu estiver!

Deu um beijo na garotinha e voltou para o quarto. Para o seu livro. Ela continuou saltitando na escada. No penúltimo degrau, antes que pulasse para o felpudo carpete da sala ... Acordou.

Passou a mão no rosto. Olhou no relógio sobre a mesa de cabeceira. 07h30. Lembrou que era segunda-feira. Tinha que ir trabalhar. O dever lhe chamava ... e mais uma das suas histórias fabulosas também.


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