Desafinada

Era sempre assim .... hora do banho, hora da cantoria ao lado.
Algumas pessoas não têm noção do quanto cantam mal.
Era o caso dela.
Dava para imaginar a preparação antes de entrar no ‘palco'.
A olhada básica do espelho, a retirada do broche dos cabelos, a toalha sendo jogada em cima do vaso, a cortina sendo aberta, o chuveiro sendo ligado.
Primeiro ela molhava o pé direito para ir se acostumando com a temperatura do líquido que descia pelos canos.

Depois, deslizava suavemente o corpo todo para sentir as finíssimas gotinhas que caiam do alto.
Sabonete em punhos, era a hora do lá, lá, lá.
Tapem os ouvidos!
Todo dia era a mesma coisa.
Pelo Amor de Deus será que ela não se toca!!!!
Coitados dos vizinhos.
Era cruel ter que ouvir aquela cantoria desafinada.
E de onde ela tirava aquelas canções???? Algumas de 1.900 e antigamente.
Muita prepotência da parte dela acreditar que todos tinham que ouvir seu showzinho particular.
E os gritos?
Desafinados, agudos.
Um horror!
Ela era daquelas mulheres de parar o quarteirão. Bela que só ela. Por isso que o vizinho do lado não reclamou. Preferiu aturar a melodia desconcertada a incomodar o ‘anjo’.
Tenho pena de quem casar com ela (que seja forte esse cristão).
Um dia a voz cessou.
Foram duas semanas de paz.
Ela adoeceu.
‘Garganta inflamada’, disse o médico.
Fui visitá-la e aproveitei para dar um conselho:
“Melhor você não cantar, para não piorar meu bem.”
Ela sorriu.
E o silêncio perpetuou ... por pouco tempo é claro.
Ela voltou ainda pior.
A cantoria agora não se restringia somente ao banheiro.
Não tinha mais local.
Era na sala, na cozinha, no corredor.
Um dia a porta ao lado se fechou abruptamente.
Vi ela indo embora.
Mochila nas costas, violão na mão, roupas despojadas, o cabelo em um corte arrepiado, a maquiagem forte.
E ela se foi.
A vizinha desafinada virou vocalista de uma banda de rock.

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